Antônio de Castro Alves



Os Anjos da Meia Noite: Photographias


Quando a insônia, qual lívido vampiro,
Como o arcanjo da guarda do Sepulcro,
     Vela à noite por nós,
E banha-se em suor o travesseiro,
E além geme nas franças do pinheiro
     Da brisa a longa voz ...

Quando sangrenta a luz no alampadário
Estala, cresce, expira, após ressurge,
     Como uma alma a penar;
E canta aos quizos rubros da loucura
A febre—meretriz da sepultura
     A rir e a soluçar...

Quando tudo vacila e se evapora,
Muda e se anima, vive e se transforma.
     Cambaleia e se esvai...
E da sala na mágica penumbra
Um mundo em trevas rápido se obumbra...
     E outro das trevas sai...


Então... nos brancos mantos que arregaçam
Da meia-noite os Anjos alvos passam
     Em longa procissão!
E eu murmuro ao fitá-los assombrado:
São os Anjos de amor de meu passado
     Que desfilando vão...

Almas, que um dia no meu peito ardente
Derramastes dos sonhos a semente,
     Mulheres, que eu amei!
Anjos louros do céu! virgens serenas!
Madonas, Querubins ou Madalenas!
     Surgi! aparecei!

Vinde, fantasmas! Eu vos amo ainda;
Acorde-se a harmonia à noite infinda
     Ao roto bandolim ...

E, no éter, que em notas se perfuma,
As visões s'alteando uma por uma...
     Vão desfilando assim!...

1a SOMBRA

MARIETA

Como o gênio da noite, que desata
O véu de rendas sobre a espádua nua,
Ela solta os cabelos... Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata

O seio virginal que a mão recata,
Embalde o prende a mão... cresce, flu
Sonha a moça ao relento... Além na
Preludia um violão na serenata!...

...Furtivos passos morrem no lajedo...
Resvala a escada do balcão discreta...
Matam lábios os beijos em segredo...

Afoga-me os suspiros, Marieta!
Oh surpresa! oh palor! oh pranto! oh medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta...

2a SOMBRA

BÁRBORA

Erguendo o cálix que o Xerez perfuma.
Loura a trança alastrando-lhe os joelhos,
Dentes níveos em lábios tão vermelhos,
Como boiando em purpurina escuma;

Um dorso de Valquíria... alvo de bruma,
Pequenos pés sob infantis artelhos,
Olhos vivos, tão vivos, como espelhos,
Mas como eles também sem chama alguma;

Garganta de um palor alabastrino,
Que harmonias e músicas respira...
No lábio—um beijo... no beijar—um hino;

Harpa eólia a esperar que o vento a fira,
—Um pedaço de mármore divino...
—É o retrato de Bárbara—a Hetaira. —

3a SOMBRA

ESTER

Vem! no teu peito cálido e brilhante
O nardo oriental melhor transpira!
Enrola-te na longa cachemira,
Como as judias moles do Levante,

Alva a clâmide aos ventos—roçagante...
Túmido o lábio, onde o saltério gira...
Ó musa de Israel! pega da lira...
Canta os martírios de teu povo errante!

Mas não... brisa da pátria além revoa,
E ao delamber-lhe o braço de alabastro,
Falou-lhe de partir... e parte... e voa...

Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Ester! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro...

4a SOMBRA

FABÍOLA

Como teu riso dói... como na treva
Os lêmures respondem no infinito:
Tens o aspecto do pássaro maldito,
Que em sânie de cadáveres se ceva!

Filha da noite! A ventania leva
Um soluço de amor pungente, aflito...
Fabíola!... É teu nome!... Escuta é um grito,
Que lacerante para os céus s'eleva!...

E tu folgas, Bacante dos amores,
E a orgia que a mantilha te arregaça,
Enche a noite de horror, de mais horrores...

É sangue, que referve-te na taça!
É sangue, que borrifa-te estas flores!
E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça!

5a e 6a SOMBRAS

CÂNDIDA E LAURA

Como no tanque de um palácio mago,
Dous alvos cisnes na bacia lisa,
Como nas águas que o barqueiro frisa,
Dous nenúfares sobre o azul do lago,

Como nas hastes em balouço vago
Dous lírios roxos que acalenta a brisa,
Como um casal de juritis que pisa
O mesmo ramo no amoroso afago...

Quais dous planetas na cerúlea esfera,
Como os primeiros pâmpanos das vinhas,
Como os renovos nos ramais da hera,

Eu vos vejo passar nas noites minhas,
Crianças que trazeis-me a primavera...
Crianças que lembrais-me as andorinhas!...

7a SOMBRA

DULCE

Se houvesse ainda talismã bendito
Que desse ao pântano—a corrente pura,
Musgo—ao rochedo, festa—à sepultura,
Das águias negras—harmonia ao grito...,

Se alguém pudesse ao infeliz precito
Dar lugar no banquete da ventura...
E tocar-lhe o velar da insônia escura
No poema dos beijos—infinito...,

Certo... serias tu, donzela casta,
Quem me tomasse em meio do Calvário
A cruz de angústias que o meu ser arrasta!...

Mas ,se tudo recusa-me o fadário,
Na hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer beijando a cruz de teu rosário!...

8a SOMBRA

ÚLTIMO FANTASMA

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso,
Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso...

Baixas do céu num vôo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
Cerca-te a fronte, ó ser misterioso!...

Onde nos vimos nós? És doutra esfera ?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito em sonhos desespera?

Quem és tu? Quem és tu?—És minha sorte!
És talvez o ideal que est'alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!


 

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